Conceição Evaristo, por ela e por todas
- infoturbantese
- 22 de mar. de 2021
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Tendo alcançado reconhecimento tardio por parte de seus pares literários, a escritora mineira não se surpreende com os obstáculos. Ao contrário, parece os aguardar com bastante preparo.

Foto: Joyce Fonseca
Rachel de Queiroz, Ligia Fagundes Telles, Zélia Gattai. O que os nomes têm em comum? Mulheres de pensamento livre e vanguarda, integrantes da Academia Brasileira de Letras (ABL, um espaço historicamente de exclusão da intelectualidade negra), que quebraram o tabu de “garotas a fazer romance”, como um dia questionou Graciliano Ramos. Dando um passo à frente no questionamento, o que teriam as escritoras da ABL e Conceição Evaristo* em comum? Ainda, mulheres quebrando as correntes tão estreitas no universo da intelectualidade brasileira, rompendo com o masculino padrão do literário. E para por aí.
Conceição é mulher preta. Os cenários de suas obras espelham a vida da favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, onde nasceu e cresceu. Em 2018, foi responsável por um particular engajamento em redes sociais, revistas e rodas de conversa, uma efervescência nascida da possibilidade de testemunhá-la (e tudo o que ela representa) ocupando uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. O eleito foi Cacá Diegues.

Photo: Brasil de Fato - personal archive
A escolha gerou outros tantos debates sobre a “política de indicação”, que se resume a campanhas, jantares, coquetéis nos mais nobres bairros do Rio de Janeiro com os atuais membros do clube; uma ferramenta vista como uma barreira social de ingresso à instituição, uma vez que ela reproduz um elemento presente em quase todas as organizações no país: a falta de acesso e representatividade. Aliás não seria essa a primeira vez que a escritora esbarraria no velho “QI”. Depois de trabalhar como babá e faxineira enquanto cursava o Magistério (modalidade do Ensino Médio no qual se formava professores), mudou-se para o Rio de Janeiro buscando a tão sonhada vida melhor, já que só conseguiria dar aulas em Minas Gerais se fosse por indicação.
Até aqui, novidade nenhuma sobre o sistema. No entanto, o que Evaristo tem feito de todas as dinâmicas de poder é um retrato da revolução nos anos 2000. Com o acesso da população negra às universidades públicas em ascensão, segundo o IBGE, desde 2018 (e sendo esse mesmo acesso um ato político por si só), a “cara” da academia está em transformação. Se na adolescência, escrevia para escapar da realidade, hoje, Conceição Evaristo afirma escrever por algum grau de vingança – servindo de inspiração para muitas pretas e muitos pretos que não mais aceitam a exclusão no universo literário e acadêmico.

Foto: Eric Garault
Entre suas pesquisas, criou o conceito de “escrevivência”, que como Conceição mesmo afirma, serve para borrar, por meio da escrita, a imagem de um passado escravocrata -- de modo que cada narrativa nasce do cotidiano, das memórias e experiências da autora e do povo preto. “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”, resume.
Aos 70 anos, a mineira é sempre incisiva ao afirmar que a escrita possibilita a ocupação de espaços nos quais normalmente não estaria – o que resume não só sua trajetória pessoal, mas também coletiva. Ocupou seu espaço na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ocupou seu espaço na coletânea de poesias Cadernos Negros, nos anos 90. Ocupou seu espaço como mestra; como doutora pela Universidade Federal Fluminense. E foi a própria financiadora de quatro de seus seis livros, num voo solo que é familiar a muitas mulheres pretas.
No entanto, não é de sua natureza romantizar as dificuldades de sua caminhada: para Conceição, é mais interessante que leia-se sua obra do que sua biografia. Suas personagens são tudo e nada, complexas, individualizadas, rompendo de vez com os estereótipos repetidos da mulher preta. Se em O Cortiço, Aluísio Azevedo oferece Bertoleza como mulher escravizada, enquanto Jorge Amado se prende à sexualidade e sedução de Gabriela, Conceição Evaristo oferece Maria-Nova: “Um dia, agora ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo”, em sua obra metalinguística* Becos da Memória.
O reconhecimento de sua obra veio por meio de diferentes condecorações, entre elas duas categorias do Prêmio Jabuti pelos contos Olhos D’água. O que humaniza e nos aproxima de Conceição Evaristo é sua certeza de que não quer ser vista como exceção. Como gravou em seus escritos, a exemplo, novamente, da obra Becos da Memória, “Dizem uns que a vida é um perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. Com a consciência de que, sim, a mulher preta é sempre a última a girar a maçaneta de muitas portas, Conceição Evaristo nos lembra de que o avanço coletivo deve ser fruto das glórias individuais.

Foto: Arquivo Nacional
*Conceição Evaristo é romancista, poeta e contista, homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti 2019 e vencedora do Prêmio Jabuti 2015. Suas principais obras são Ponciá Vicêncio, 2003 (romance), Becos da Memória, 2006 (romance), Poemas da recordação e outros movimentos, 2008 (poesia), Insubmissas lágrimas de mulheres, 2011 (contos), Olhos d’água, 2014 (contos), Histórias de leves enganos e parecenças, 2016 (contos e novela) e Canção para ninar menino grande, 2018 (romance) – todos disponíveis nas maiores livrarias online do Brasil.
*Glossário:
Metalinguística: função da Língua Portuguesa (entre outros idiomas) em que o emissor da mensagem aborda a própria linguagem da qual se utiliza. Exemplo: um filme que “fala” sobre cinema ou um livro que narra a vida de um escritor.




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